sexta-feira, 31 de agosto de 2007

Resposta a Dimenstein

"A elite sanguessuga é que deveria deixar o país e, que, se é assim e aceitamos a corrupção empresarial, muito pior do que a estatal, deveríamos ter aulas sobre como roubar melhor e, ao invés de professores, deveríamos convidar ladrões para lecionar".

Por Roberto Blatt*


"A revolta dos medíocres", publicado no jornal Folha de S. Paulo de domingo dia 19/08/07, escrito pelo senhor Gilberto Dimenstein, obrigou-me a opinar. Vejamos: nesta segunda-feira será anunciada uma iniciativa paulista que, segundo Dimenstein,visa estimular o desempenho dos funcionários públicos no Brasil. Como será esse ESTÍMULO?

Simples: pagar mais a quem produz mais, o que, segundo o autor, é COMUM e corriqueiro na iniciativa privada. Falso. Muitas vezes os que trabalham mais ganham menos. Não pretendo aqui resgatar grandes visões de mundo, que nos fazem falta, sem dúvida, porque não tenho condições intelectuais para tanto. Porém, compreendo e vejo o que a competição e o estímulo por desempenho fazem no setor aéreo, por exemplo, de planos de saúde, nos pedágios, nos bancos, e também no sistema particular de ensino (desnecessário falar muito na compra de diplomas e de ingresso no vestibular). A primeira coisa que me vem a mente é uma cena comum nos colégios particulares de Curitiba: " - Eu pago teu salário, ponha-se no seu lugar" diz o aluno a seu incompetente professor. Essa lógica será transposta para a Escola Pública, que já padece de muitos males.

O "estímulo" a ser adotado, cuida para que os professores da periferia, tadinhos, não sejam prejudicados: será feita uma competição interna, ou seja, a pior escola, terá sempre um melhor funcionário, um segundo, um terceiro, etc, até o último; este, certamente terá condições de dar a volta por cima no mês que vem.

O objetivo da medida, diz o colunista, parece ser avaliar a capacidade de avaliar: " O que está em jogo por trás dessa briga não são apenas os indicadores de educação, mas o grau de articulação da sociedade para enfrentar as corporações e impor mais eficiência ao serviço público. Testa-se, em suma, a capacidade de medir desempenho ..." Como assim, cara-pálida? A sociedade quer saber se tem poder sobre o funcionário-marajá? Quer testar os testes sobre o desempenho desses preguiçosos? Caramba, está mais obscuro do que o espírito objetivo de Hegel. Trata-se de um xadrez difícil de acompanhar, mas que se assenta sobre a falácia de que iremos fiscalizar o rumo dado a nossos impostos: " - NÓS pagamos teu salário, professor." Além disso, associa de maneira sub-reptícia uma proposta tosca como essa ao bom andamento da vida político-social brasileira. O interesse dessa medida não é o desempenho da educação, mas sim a tentativa da sociedade de dobrar o funcionário público, o marajá inimigo, já que ele é incompetente. Trata-se de um pano de fundo político, estrategicamente situado pelo jornalista para dar mais legitimidade a uma idéia que domina (teimosamente) a educação a quase 20 anos: o mercado tem sempre mais competência e representa melhor a sociedade. A questão a ser respondida é: a qual S.A. ele se refere?

Podíamos criar uma ANAC da Educação, que acham? Sim, uma agência reguladora que nos dê o resultado dos testes dos testes ( sic ) que avaliam o desempenho das empresas. Ou melhor, uma ANATEL da Educação, essa sim, capaz de domar o monstro parasita do trabalhador concursado. Que tal testar o poder de influência dos lobbies da iniciativa privada no Congresso e no Executivo?

Dados, queremos dados. O jornalista fornece: dos nossos 12 meses de trabalho, 4 (pasmem) são "dados" ao governo que, por sua vez, se refestela na divisão com os funcionários privilegiados. Queremos de volta. Mas a classe média já não abate imposto de renda com Escola Particular pro seu filho ter a quem ofender e onde descontar seu desamparo moral e cultural? Vamos lá, são 2 meses a menos. Plano de saúde, quanto dá? Um mês? Duas semanas? Chamem um estatístico sério, pelo amor dos meus filhinhos! De todo modo, o pobre, esse sim, dá mesmo 4 meses ao governo, e os empresários querem tê-los ao lado dos outros 8 que já detêm. O Estado brasileiro sempre foi balcão de negócios da burguesia brasileira e americana. Os especuladores imobiliários têm perdas na Califórnia e nós pagamos com dinheiro público.

Sinto raiva ao ler que o colunista fecha com os sindicatos num ponto: magnânino, ele concorda que o professor não é o único culpado pela baixa qualidade de ensino. Sabe que o professor é também uma das vítimas do caos educacional. Só não sabe o quanto. Desafio o jornalista a me substituir por uma semana: preciso terminar uma dissertação de mestrado inconclusa desde que comecei no magistério. Trabalho em escolas do centro de Curitiba, nunca vi um aluno armado, portanto não tema pela sua segurança física, não haverá problemas. Gostaria que o senhor tentasse ensinar filosofia aos meus alunos. Não filosofia de botequim, e sim metafísica pura, aquela muito bem ensinada no que restou das Universidades Federais. Obviamente o governo reduziu o currículo ao ponto mais medíocre possível, em termos de conteúdo, mas o senhor não concordará em ser tão superficial, não é mesmo? O senhor receberá em torno de R$ 7,00 por aula e depois, podemos calcular, de acordo com o grau de meditação e apreensão dos alunos, alguma GRATIFICAÇÃO. Isto mesmo, ficaremos gratos e essa gratidão será transformada generosamente em dinheiro: podemos pagar aí uns 1,25 a mais, 1,50. Já paga quase a passagem inteira do ônibus, hein? É só completar.

Paixão pelo aprendizado. O articulista da Folha diz que o professor deve transmitir essa emoção aos seus alunos. O título desse meu artigo, na verdade, deveria ser "A bestialização do professor", mas guardarei na gaveta para o próximo. Ora, todo professor graduado um dia foi um estudante interessadíssimo em química, geografia, inglês, etc. Costumo dizer aos meus alunos que o professor termina a graduação tinindo e em dois anos dando aula vira um retardado. O professor é uma das maiores vítimas desse sistema. A contradição que vive é absurda, já que emburrece no magistério. Pode? Oh, mas e nossas pobres criancinhas? Que absurdo preocupar-se com os adultos!

Nietzsche diz que o professor quer tanto o bem do seu aluno, que transforma-se numa mera ponte para o saber, perdendo a seriedade consigo próprio ( Humano, Demasiado Humano, aforisma 200). Digo que isso produz o emburrecimento, a bestialização e, por conseqüência, o fracasso do sistema. O professor deveria ser um pesquisador, preocupado em construir e manter seu patrimônio intelectual, jamais permitindo que um bando de pirralhos mal-criados o dilapidem. - Volta o ressentimento do incompetente, dirá o burguês pusilânime. Alguns pensarão que esse professor não gosta de dar aula, mas é o contrário: odeio não poder dar aula, pois tenho que "educar" filhos que não são meus (por "educar", entenda-se bons modos, que é total responsabilidade da família). E se os próprios pais são incapazes de dar conta de um, quanto menos eu de 40?

O fato é que, um sistema em que o mestre emburrece é como um avião que se desloca por terra. Perdoem a metáfora ruim, mas ainda tenho que corrigir 300 provas e preparar aulas para a semana que vem (hoje é domingo?) e, além disso, já sou professor a dois anos. Não é estranho que os professores não consigam sequer ingressar num mestrado sério, e estão sempre "comprando" uma pós aqui, uma especialização acolá, justamente em instituições que premiam o desempenho?

O desamparo institucional do "profissional da educação" (detesto essa expressão filistéia) é completo. A violência física dos menores de idade, mas maiores de tamanho, transforma-se na cotidiana violência moral dentro da sala de aula. Assistam ao documentário "Pro dia nascer feliz", de João Jardim (que apesar de não apontar claramente a causa do problema, é um bom começo) e verão as condições de trabalho. Assistam também ao "Notas sobre um escândalo" ( Notes on a Scandal, Inglaterra, 2006) que aborda de canto de olho o problema, mas dá uma idéia das condições de trabalho mesmo num país de primeiríssimo mundo. Gostaria de poder filmar uma semana de aula, com câmera escondida, mas ainda estou pagando um computador fraquinho (num programa em que o governo "devolve" dinheiro público à empresários) e não tenho como financiar nem um projetor, que seria necessário. Além disso, dizem que é proibido filmar as aulas. Por que? Não vivemos numa democracia transparente, legalmente constituída? Gostaria de gravar tudo o que os alunos fazem na escola como prova da irresponsabilidade (por que não dizer mau-caratismo?) deles mesmos, já que sou rousseauniano, em primeiro lugar, dos pais e dos governos, em segundo.

Entretanto, não há ninguém que se engane mais a respeito do filho do que o próprio pai. Dirão que o professor é despreparado (sic). O governo, por seu lado, tem que alimentar os empresários, logo ... Será que a FIESP, a quem Dimenstein delega o poder de resolver o caos educacional, concordaria, por exemplo, com Aristóteles? Vejam só:

"Portanto, é lógico que quem primeiro descobriu alguma arte, superando os conhecimentos sensíveis comuns, tenha sido objeto de admiração dos homens, justamente enquanto sábio e superior aos outros, e não só pela utilidade de suas descobertas" (Metafísica, Livro I)
Algo me diz que tais idéias não são lucrativas.

Os professores sérios não têm com que se preocupar, diz o colunista. Não é verdade. Talvez sejam justamente eles que devam preocupar-se com esse tipo de transplante da selvageria capitalista para o cerne do processo educativo. Mas a vida é assim, capitalismo, dirão os supostos realistas. Outro dia uma aluna minha disse: " - Professor, se o senhor odeia tanto o país por que não vai embora? A vida é assim mesmo, e ganha quem consegue tirar mais " Respondi que a elite sanguessuga é que deveria deixar o país e, que, se é assim e aceitamos a corrupção empresarial, muito pior do que a estatal, deveríamos ter aulas sobre como roubar melhor e, ao invés de professores, deveríamos convidar ladrões para lecionar. Note-se que reclamo, na aula de filosofia política, de um país campeão: em acidentes de trânsito, rodoviários e aéreos, sem infra-estrutura tecnológica, com uma das piores distribuições de renda do mundo; não temos nem mesmo trens e, provavelmente, lideramos rankings como os de analfabetismo, doenças facilmente erradicáveis, corrupção e de fracasso escolar, que os governos escondem obrigando os professores a aprovar alunos absolutamente corruptos, já que desde pequenos acostumam-se a dar um jeitinho, a não cumprir responsabilidades didáticas simples, enfim, um país de analfabetos funcionais e mentecaptos políticos, isto é, morais. E eu que sou convidado a me retirar do país. Talvez não seja má idéia. Vou tentar, juro.

Medíocre é a educação quando ela só serve para melhorar os números dos empresários. Se isso tornar-se um fim, vai ser um tiro no próprio pé. Educação é um luxo necessário. Quero dizer que educação é caro mesmo e não tem como baratear. Comece-se limitando para no máximo 20 o número de alunos em sala de aula – o ideal seria 10, mas nem 20 será admitido, provavelmente, dada a mesquinharia grosseira de quem não entende o que é elevação cultural; diminua-se a carga horária dos professores para que eles continuem crescendo e parem de regredir; de preferência cada professor deveria ter uma ou duas turmas sob sua tutoria, no máximo; e, por fim, criem um salário um decente (o piso nacional proposto atualmente gira em torno de míseros R$ 800,00). Imagine o preço de tais reformas. Baratear só serve para massificar um processo que não tem nada de aprendizado, de crescimento cultural. Deve ter sido essa a escola de Lula. Formou-se com mérito, recebe mensalmente a gratificação do empresariado.

Educação exige hierarquia. É um processo autoritário e anti-natural, não há como escamotear isso em nome de um suposto bem-estar dos adolescentes, viciados em modismos e preconceitos. Esse é o primeiro item a ser resgatado: o princípio do aprendizado provem da autoridade do professor, tanto do ponto de vista prático, quanto epistemológico. Enquanto essa questão não for sanada, impor uma mercadologia do suborno só irá agravar o cenário de camelódromo que impera na escola pública.

P.s.: O s camelôs que me perdoem, já que provavelmente eles são muito mais honestos na informalidade do que os grandes sonegadores do país, estes sim, impõem um regime chinês aos trabalhadores.

*Roberto Blatt é professor de Filosofia no Ensino Médio em Curitiba