terça-feira, 11 de setembro de 2007

Anistia: após 28 anos, esperança de solução para os desaparecidos

O livro-relatório lançado pelo governo federal pede mais investigações para tentar localizar os restos mortais dos desaparecidos políticos durante o regime militar

Para recuperar a história de cerca de 400 militantes políticos vítimas da ditadura militar no país, a Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República (SEDH) lança o livro “Direito à memória e à Verdade - Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos”. A obra relata o trabalho da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos - instituída pela Lei nº 9.140 de dezembro de 1995 - que, durante 11 anos, trabalhou na busca de solução para os casos de desaparecimentos e mortes de opositores políticos por autoridades do Estado durante o período de 1961 a 1988. O livro, lançado na data em que a Lei de Anistia, de 28 de agosto de 1979, completa 28 anos, é o primeiro documento oficial do governo federal a relatar as condições em que os opositores da ditadura civil militar foram torturados e mortos.

Em entrevista ao Brasil de Fato, o ministro da SEDH, Paulo Vannuchi - organizador da publicação -, afirma que "a partir de agora temos um livro oficial com carimbo do governo federal, que incorpora a versão das vítimas". Segundo ele, um dos desafios que ainda se colocam para a Comissão é a localização dos restos mortais dos desaparecidos durante o regime. No entanto, para que isso aconteça, ele lembra que "é preciso que haja um procedimento interno dentro das Forças Armadas, no sentido de que eles ouçam militares que participaram da repressão e que tenham informações para podermos cumprir esse direito milenar e sagrado das famílias de enterrar seus entes queridos".
Quem é

Cientista político e jornalista, Paulo de Tarso Vannuchi foi preso político entre 1971 e 1976 e um dos 34 signatários do amplo dossiê entregue ao presidente nacional da OAB, Caio Mário da Silva Pereira, em 23 de outubro de 1975, arrolando os nomes de 233 torturadores, descrevendo os métodos de tortura, as unidades onde eram praticadas e apresentando uma primeira lista geral dos assassinados desde 1964. É co-fundador e membro do Centro de Educação Popular do Instituto Sedes Sapientiae. Trabalhou na equipe que realizou, sob sigilo, o projeto de pesquisa “Brasil Nunca Mais”. Co-fundador do Instituto Cajamar, ao lado de Lula, Paulo Freire, Florestan Fernandes, Antonio Candido, Perseu Abramo e outros, e desde dezembro de 2005, secretário especial dos Direitos Humanos, que possui status de ministério.
Brasil de Fato - Como surgiu a idéia de fazer o livro?
Paulo Vanuchi - Quando eu cheguei na Secretaria, em dezembro de 2005, já havia a idéia geral de fazer um livro-relatório. A Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos foi instituída pela Lei nº 9.140 de dezembro de 1995 e começou a funcionar em 1996. Esse é o primeiro documento oficial do Estado brasileiro que faz tal relato. Houve muitos trabalhos de jornalistas, especialistas, dossiês dos mortos e desaparecidos que tratavam do assunto, mas faltava um documento oficial. Ele registra toda essa informação que não estava sistematizada feita com base no trabalho da Comissão, a qual foi criada com três objetivos: formalizar o reconhecimento de que o Estado era o responsável pela morte de opositores políticos, promover a reparação indenizatória e reunir esforços para localizar restos mortais de aproximadamente 140 brasileiros cujos corpos não foram entregues aos seus familiares. A Comissão trabalhou 479 casos, dos quais 118 foram indeferidos. Dos 353 deferidos, já havia 136 que estavam numa lista anexa à Lei. O livro resgata e documenta sem esconder nada, como o que ainda falta ser realizado, como a questão da localização dos corpos. Para que isso aconteça é preciso que haja um procedimento interno dentro das Forças Armadas, no sentido de que eles ouçam militares que participaram da repressão e que tenham informações para podermos cumprir esse direito milenar e sagrado das famílias de enterrar seus entes queridos. E isso envolve a necessidade de abrir arquivos e fazer uma narrativa. A partir de agora temos um livro oficial que incorpora a versão das vítimas com o carimbo do governo federal. Não é uma iniciativa que tenda a gerar aplausos e contentamento das Forças Armadas, porém, nosso entendimento é de que a Comissão é de Estado e não do governo Lula. Ela atravessa quatro mandatos presidenciais com uma linha de continuidade.
A localização dos restos mortais dos desaparecidos políticos prescinde da abertura dos arquivos militares.
É preciso abrir todas as informações pertinentes. Em termos técnicos, os arquivos sobre a repressão política já têm mais de 25 anos e, pela lei brasileira, já estão “desclassificados”. A classificação pode ser entre reservado, secreto ou ultra secreto, de acordo com a lei 11.111, promulgada em 1995, durante o governo Fernando Henrique Cardoso. Como não houve nenhum procedimento de reclassificação desses arquivos, eles estão rigorosamente abertos e onde quer que eles apareçam não estão mais protegidos pelo sigilo. No entanto, a alegação de unidades militares mais de uma vez diligenciados pela Comissão é de que os arquivos foram destruídos com base na legislação vigente em cada época. Acontece que a legislação vigente em cada época sempre exigiu que, para destruir um arquivo, fosse assinado um termo de eliminação de arquivos, com testemunha. Se houve mesmo a destruição de arquivo, será necessário apresentar esse termo de destruição ou será preciso abrir uma sindicância para apurar quem foi o responsável pelo crime de destruição de um documento que não podia ser destruído. Há inúmeras publicações recentes que mostram que documentos estão indevidamente em mãos particulares, possivelmente de ex-participantes dos órgãos de repressão.
O senhor acha que com a publicação do livro pode exercer uma pressão para a localização dos restos mortais dos desaparecidos?
O livro expressa o ponto de vista de uma área do governo, que é de direitos humanos. Nessa área não restam dúvidas de que houve violações. Na própria apresentação do trabalho dizemos que nosso objetivo é o da busca da reconciliação. Mas ela não pode ser feita na omissão ou no silêncio. A democracia brasileira, os direitos humanos e o governo Lula firmam uma posição muito clara nesse sentido. Agora, evidente que, a partir desse livro, o encaminhamento de passos seguintes também depende muito do presidente e do ministro Nelson Jobim que, por sorte, é o autor da lei de mortos e desaparecidos quando ele era ministro da Justiça do governo Fernando Henrique. Então, eu acho que o momento é muito importante. O tema passa a ter um documento oficial do governo brasileiro que evidentemente vai ser distribuído. O que não pode haver é silêncio com o argumento de que vai abrir feridas. Há um direito inalienável, que é o direito dos familiares. Aí não tem silêncio. Ou podem dar a desculpa de que os corpos não podem ser procurados porque eles já foram destruídos. Precisam contar quem destruiu, quantos foram. Eu tenho a convicção que nós não vamos localizar os 140 corpos, mas uma parte temos muita chance de localizar. A gente não pode permanecer nessa atitude de evasivas, de não empenho.
O presidente da Comissão, Marco Antônio Rodrigues Barbosa, disse que o livro significa um “resgate à memória e o direito à justiça”. O documento também fala da interpretação da Lei de Anistia, que é considerada polêmica por muitos. A partir desse livro seria possível discutir a revisão da Lei de Anistia?
Esse é um tema mais delicado e a Comissão seguiu um norte durante 11 anos. O foco é no trabalho de reconhecimento, de indenização e o objetivo humanitário de localizar os corpos. Não entro no tema da responsabilização. O Marco Antônio, quando utilizou a palavra “justiça” pode estar falando de justiça no sentido de “eu não exijo que o torturador vá para a cadeia, mas eu exijo que a filha dele saiba que ele violentou sexualmente a presa política que estava no pau-de-arara”. Isso também é uma maneira de se fazer justiça. A Comissão firmou essa linha de 11 anos e, evidentemente, isso suscita uma possível crítica de familiares, de organizações de direitos humanos. Podem dizer que “esse livro devia exigir a punição e terminar recomendando a abertura imediata de processo”. O livro podia falar “é possível fazer uma nova uma nova Lei de Anistia” ou também podia ignorar a polêmica sobre a Lei. Optamos por não esconder nada, como a existência de uma consistente polêmica. Juristas de importância sustentam que, por um lado, o crime de tortura é imprescritível e, de outro, existe o crime permanente da ocultação de cadáver. Em tese, a Anistia absolve tudo com força de uma palavra chamada crimes conexos. E os juristas com muita fundamentação vão argumentar que, se o legislador quisesse absolver o torturador, a redação da Lei seria: “Estão anistiados os delitos políticos cometidos pelos opositores ao regime e também os eventuais crimes cometidos na repressão a esses opositores”. Aí seria claramente uma lei acobertando ou agasalhando essas violações. Como em 1979 preferiram por um caminho cínico, ficou combinado entre os parlamentares da época que a palavra “conexo” queria dizer isso. Nenhum tribunal internacional, nenhum grupo de legisladores, a quem for apresentada essa lei como arbitragem vai dizer que a redação que ela tem é uma redação que absolve todos os violadores,degoladores, estupradores. O tema da anistia é um tema que pode ser suscitado pelos paralmentares, pelo Ministério Público e pela sociedade civil. O governo, com a análise política que todo governo faz, baseado no seu projeto estratégico e correlação de forças, preferiu manter a linha de continuidade dessa comissão, de não abrir esse tema. Então, depende se esse livro ajuda a acender um debate.
Como o senhor vê iniciativas como a da família Teles, que entrou com uma ação civil declaratória contra o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, acusado de torturar a família no Doi-Codi?

Vejo como uma iniciativa boa, corajosa, inteligente. É uma coisa muito sagaz do Fabio
Comparato, que percebeu que se existe um argumento de que a Anistia anistiou, vamos driblar. Não é uma ação mais a reparação civil. A ação civil cria um direito que fica difícil comprovar. O argumento desapareceu e ele foi fazer atos de desagravo e pouco se articulou nessa linha de “estamos sendo vitimas de revanchismo”. A família pedia o reconhecimento de que ele os torturou. Querer chamar isso de revanchismo é evidentemente uma manobra de despiste. Acho que foi uma coisa muito positiva, muito importante.

Fonte: Brasil de Fato (Tatiana Merlinoda Redação)

Nenhum comentário: