segunda-feira, 17 de setembro de 2007

O dia em que matei Tancredo e o dia em que Tancredo me matou

por Paulo José Cunha*


No dia em que matei Tancredo Neves quase não dormi, preocupado. Afinal, gostava muito dele, não tanto pelas suas idéias, mas porque me distinguia com o tratamento de “Professor”. Quando cruzava comigo nos corredores do Congresso, cumprimentava-me, todo cordial: “Professooooor...!”

Isso até descobrir que ele tratava por “Professor” qualquer pessoa de quem não sabia do nome ou havia se esquecido. Acho que me incluía entre os últimos. Acho até que nunca soube meu nome.

Mas não foi por isso que o matei. O assassinato deveu-se a motivos puramente profissionais. E se tivesse ido a júri, no máximo seria condenado por homicídio culposo, nunca doloso, com a intenção de matar. Não sei nem se houve dolo. Mas que houve traquinagem, ah, isso houve.

Finalzinho do governo Figueiredo, e Figueiredo nada de indicar candidato à sua própria sucessão. Especulações de toda ordem. Quartéis calmos, nenhum militar se apresentando para dar seqüência ao desfile de generais-presidentes. “Prendo e arrebento”, dizia Fiqueiredo, advertindo, lá do jeito dele, para a necessidade da abertura política e da recomposição democrática do país. Só Maluf – sempre ele – estava com a cabeça de fora, todo serelepe, certo de que, montado no espólio da velha direita, tinha chances de ser a opção civil na transição para a democracia. Dizia-se que Figueiredo não ia com a cara de Maluf. Em compensação, também não dizia nada: Figueiredo era moita pura. E as especulações correndo.

Reunião noturna, num quarto do Hotel Nacional, em Brasília, entre Ulisses Guimarães e o ainda governador mineiro Tancredo Neves. Tema: sucessão. Fui escalado para ir lá, fazer matéria para o “Jornal da Globo”. Ao chegar, cuidamos em preparar tudo, para flagrar os visitantes à saída. E toca a instalar luz, testar câmera, testar som. Ah, testar som... A desgraça foi aí. Sempre detestei contar na frente do microfone, aquela história de “1, 2, 3, testando”. Prefiro inventar qualquer bobagem, mas contar, nunca. Inventei e comecei, falando alto ao microfone: “O Presidente Figueiredo acaba de anunciar que o governador de Minas, Tancredo Neves, é o nome ideal para sua sucessão...” E fui por aí, inventando toda sorte de maluquices, só pra testar o microfone. Só não me dei conta de que a reunião acabara e Tancredo já estava atrás de mim, e ouvira tudo. Interrompeu-me, aos berros: “Onde saiu isto, quem falou isto, a que horas o Figueiredo anunciou isto? Ninguém me avisou de nada, como tudo isto aconteceu”? Uma carrada de perguntas encangadas uma na outra, e eu gaguejando, tentando responder, explicar, e o homem com o olho arregalado, os braços pra cima, sem me deixar falar. “Dr. Tancredo, deixe eu lhe explicar, eu só estava...” – Como é que acontece uma coisa dessa gravidade e ninguém me diz nada! O jeito foi segurar-lhe com firmeza o braço, falar mas alto e contar-lhe que tudo não passara de um teste de microfone. O braço dele gelou, o olho fechou, a cabeça virou-se repentinamente para trás. “Pronto, matei o homem!”. “O senhor está bem, Dr. Tancredo? Está sentindo alguma coisa?” Logo se recobrou, segurou a ponta da gravata com uma mão, passou a outra pelo meu ombro e, respirando fundo e meneando a cabeça, desabafou: “Professoooor, assim você me mata!”

Agora, a minha morte. No dia em que me mataria, Dr. Tancredo já estava a caminho de São Paulo, onde morreria de vera naquele 21 de abril. Estado clínico agravado, o jeito fora removê-lo de Brasília para o Sul Maravilha, em busca de melhores recursos médicos. Durante todo aquele tormento, era eu quem tinha de entrar ao vivo todo início da manhã, contando o que acontecia no Hospital de Base durante a noite e a madrugada. O pior é que não acontecia nada. O primeiro boletim sempre saía às 8 ou 9 da manhã, pelo meu ex-colega de TV Globo, Antonio Brito, agora porta-voz de Tancredo, quando o “Bom Dia, Brasil” já tinha ido ao ar. Passava as noites em claro, esperando acontecer alguma coisa, alguém contar um detalhe que fosse. Nada. O jeito foi aprender a dormir nuns sofás de cor cinza (o primeiro sofá a gente nunca esquece).

Mas, agora, o homem tinha ido embora. Seguidas vezes havia tentado subir até o andar onde ficava o quarto dele. Implorava aos médicos e enfermeiros por um fiapo de imagem que fosse, uma informaçãozinha qualquer, mesmo furreca, mesmo pobrinha, qualquer coisa que me salvasse dos boletins requentados que era obrigado a fazer. Mas não rolava nada. Naquela manhã voltei à carga, argumentando com um enfermeiro que tinha se tornado meu chapa, que agora o homem já não estava lá, então que tal me deixar subir e mostrar o quarto onde ele permanecera durante todos aqueles dias e noites? O telespectador brasileiro ia agradecer... Heim, heim, que tal? Pôxa, eu sempre respeitei todas as orientações, nunca tentei entrar onde não me era permitido, bem que agora você podia quebrar meu galho e me deixar entrar no quarto do homem... Heim, heim? Vai, quebra meu galho aí...

O cara compadeceu-se de mim, e me deixou subir, com a equipe. Filmamos tudo, cama desfeita, equipamentos, utensílios, instrumentos, roupas sujas em armários, tudo. Revirei onde pude, bisbilhotei à vontade. E fiz uma ótima matéria para o Jornal Hoje. À saída, um médico interceptou nossa equipe, queria saber de onde vínhamos. Contei tudo, menos o nome do meu benfeitor. “Remexeram em alguma coisa?” Claro, respondi. Sem remexer, como mostrar a intimidade do quarto onde o futuro presidente da república estivera entre a vida e a morte?

- Quem vai morrer é você, rapaz. Aquilo lá está cheio de bactérias. Nunca ouviu falar de infecção hospitalar? Não sabe que, mesmo com toda a proteção, você pode contrair doenças terríveis se não se proteger com máscaras e roupas especiais? Pelo menos lave bem as mãos AGORA e depois vá pra casa, tomar um bom banho.

Morri, mas de medo. Voei pro banheiro lá de casa. Só depois de um belo banho voltei à redação pra fechar a matéria.

Hoje, tantos anos depois, percebo que Dr. Tancredo e eu estamos quites. Eu o matei num dia, ele me matou noutro. Mas isso é o de menos. Pior é a saudade daquele “Professoooor!” berrado pelos corredores do Congresso. Talvez por isso, anos depois, tenha me tornado mesmo professor de Jornalismo, onde ensino que o primeiro mandamento da profissão é não matar nem morrer. O resto é moleza.

*Paulo José Cunha é jornalista e professor universitário

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