quarta-feira, 7 de novembro de 2007

O Tropa de Elite e a leitura reacionária



Por Lelê Teles*

Detesto ver estréia de filmes, detesto cinema lotado. Detesto ter que ver um filme só porque todo mundo tá vendo e comentando. Não sou animal de rebanho. Por isso, até ontem não havia visto Tropa de Elite. Fui motivado a vê-lo, sobretudo, depois de uma discussão com uma colega de trabalho. Ela chegou toda triunfante e falou: "Olha, já parou para pensar quantas pessoas têm que morrer para você enrolar o seu baseado?"

Ela ficou parada na minha frente, puxando a blusa pra baixo e a calça pra cima, num gesto quase automático das meninas. Você tá namorando PM, Olívia? E ela: "hã?" Eu falei alto, "tá namorando PM ou tá lendo a Veja, Olívia? De onde você tirou essa frase ridícula?" E ela triunfante: "Eu vi o filme Tropa de Elite, o filme mostra que vocês, que usam drogas, alimentam o mercado negro e a violência..." antes que ela terminasse a frase eu perguntei: Olívia, pelo que me consta esse filme ainda não saiu no cinema, onde você viu o filme?" Vi em casa, como todo mundo; ela disse. Olívia, você comprou um filme pirata e vem falar de quem alimenta o mercado negro e a violência? Vá se catar Olívia! Ela saiu toda desajeitada, baixando a blusa e levantando a calça por trás, puxando o cós.

Ontem teve promoção no cinema, filmes brasileiros a dois reais, fui ver o Tropa e constatar se a Olívia tinha tirado a frase do filme ou ela interpretou errôneamente o que ouviu. Bom, a frase tava lá. E o filme é um recorte sob o ponto de vista de um policial assassino!

Entre outras coisas o filme fala de um Estado que só sobe o morro fardado, um lugar-comum. E fala de uma abstração chamada sistema. A palavra chave do filme é SISTEMA. O SISTEMA criou uma polícia militar corrupta. E um Estado Policial. Proibiu a venda de drogas, mas também colocou sob o mesmo crime plantar, dar, oferecer, transportar ou usá-las.

No entanto, sob um juízo muito discutível, o SISTEMA resolveu discriminar as drogas, dizendo as que podem e as que não podem ser comercializadas, e o critério é simplesmente não ter critério. Com a proibição, o SISTEMA criou o mercado negro. O mercado negro gerou a violência e a violência gerou o Bope. O SISTEMA criou o Bope pra matar, não para acabar com o tráfico ou a violência, mas para gerar mais violência.

Curiosamente o filme fala quase que exclusivamente de maconha. A maconha é um estupefaciente; portanto, inibe o usuário, ao invés de torná-lo forte, invencível e assassino. No mundo inteiro, o cigarro e o álcool são os maiores causadores de mortes. A cocaína e a maconha nem entram nestas estatísticas, porque sua contribuição para morte de pessoas é insignificante. A não ser quando traficantes lutam por pontos-de-venda, ou viciados matam para comprar droga, mas isso também é insignificante nas estatísticas. No entanto, na televisão o que mais se propaga é o uso de álcool. O álcool como se sabe é o maior causador de acidentes fatais no trânsito. O álcool é um conhecido destruidor de lares. O álcool e o alcolismo levam o Estado a gastar milhões de reais com o sistema de saúde só pra cuidar destes viciados.

Em Brasília, decretou-se a lei seca, por um período, e o crime diminuiu e muito. Percebeu-se que a maior parte dos crimes violentos têm o álcool como estopim. Mas o Capitão Nascimento não mata quem bebe, nem quem vende bebida. E o aspira Matias não espanca cachaceiros em butecos; o Capitão Fábio até toma uma cervejinha enquanto trabalha.

O problema é que quase todas as culturas humanas que palmilharam esse planeta, em qualquer época, utilizaram algum tipo de substância que altera a consciência: ervas, cactus, fermentação de frutos, fervura de raízes, substâncias extraídas de animais (sobretudo anfíbios), folhas, cogumelos, sementes, flores (como a papoula), raspa de tronco de árvores etc! Inclusive alguns animais se utilizam também deste recurso: macacos fabricam "cachaça" com a fermentação de alguns frutos, gatos comem ervas que os deixam alucinados etc. Não seria diferente em uma sociedade frenética como a nossa.

O problema é que o GRANDE SISTEMA não permite que os peruanos, bolivianos e colombianos vendam suas drogas em pó (porque as folhas são endêmicas, só dão em fartura naquela região), permitem somente que escoceses, franceses, alemães e italianos vendam suas drogas líquidas, que são patrimônios nacionais, veja você. E não se esqueça, o proibição do álcool criou o Alcapone (quase um sinônimo) e enriqueceu a assassina e sanguinária máfia italiana. O ópio também é proibido, porque senão viraria uma fonte legal de riqueza para países como Afeganistão e Marrocos. Ora, o sistema tem um cérebro e uma ideologia! O Mc Donald's mata mais que a maconha!

Agora veja você, nas usinas de cana do Brasil ocorre um vergonhoso genocídio, boias-frias que vivem no máximo 27 anos, morrem de exaustão por conta do trabalho escravo ao qual são submetidos. O SISTEMA estimula esse tipo de trabalho escravo. Quantas pessoas têm que morrer para você colocar álcool no seu carro? Law Kin Chon, o magnata da pirataria no Brasil, e que alimenta o SISTEMA com propina, explora miseráveis e mata para manter o seu negócio sujo. Quantas pessoas têm que morrer para você poder assistir a um DVD pirata ou desfilar com uma falsificação da Louis Vuiton? A lista é enorme. Se um filme pode ser resumido a uma frase, a um jogo de retórica tão lugar-comum como esse, ou o filme é muito ruim ou os seus espectadores é que o são!

*Lelê Teles é escritor e publicitário

Um comentário:

Anônimo disse...

Isso ae...gostei do texto !!!
Como pode a hipocrisia ter chegado tão longe....